domingo, 8 de fevereiro de 2009

A geração albinóide

Que geração será a das crianças que vão passar doze horas na escola?
07.02.2009, Natália Faria

Adolescentes como os do filme Paranoid Park, quase delinquentes. Ou como os outros, sem mais dramas. Mas o tempo a mais na escola deve ser para brincar


Diz o psiquiatra Daniel Sampaio: "O que é preciso é modificar os horários dos pais e não aumentar o tempo de permanência das crianças na escola. Se persistirmos neste modelo, estaremos a criar uma geração de adolescentes como a do Paranoid Park, do Gus Van Sant", ou seja, jovens a arriscar a fronteira da delinquência.

Diz o psiquiatra Daniel Sampaio: "O que é preciso é modificar os horários dos pais e não aumentar o tempo de permanência das crianças na escola. Se persistirmos neste modelo, estaremos a criar uma geração de adolescentes como a do Paranoid Park, do Gus Van Sant", ou seja, jovens a arriscar a fronteira da delinquência.

Desdramatiza o neuropediatra Nuno Lobo Antunes: "Não antecipo nada esse cenário. Não creio que a permanência das crianças na escola durante mais tempo vá provocar uma hecatombe ou deitar a perder uma geração. Não sendo a situação ideal, não me parece que as crianças fiquem mal empregues".

A possibilidade de as escolas do 1.º ciclo do ensino básico funcionarem 12 horas por dia, entre as sete da manhã e as sete da tarde, posta esta semana em cima da mesa pela Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap), está longe de gerar consensos. A filosofia é adequar o horário das escolas públicas às jornadas de trabalho dos pais, libertando-os da necessidade de recorrer aos ATL (Actividades de Tempos Livres) que, ainda por cima, saem muito caros. De caminho, procura-se pôr a escola pública a funcionar numa lógica de centro escolar, capaz de oferecer terreno seguro para a brincadeira e para aprendizagens alternativas.

O Ministério da Educação garante que nada está decidido. "As actividades de enriquecimento extracurricular têm uma comissão de acompanhamento que analisará todas as eventuais propostas que surgirem nesse sentido. Só depois o ministério poderá avaliar e decidir", lê-se na resposta às perguntas colocadas pelo PÚBLICO. E dali não se arranca nem mais uma vírgula. Mas o presidente da Confap, Albino Almeida, garante que o processo está a ser negociado há um ano e está em fase avançada.

Para Daniel Sampaio, porém, a equação está posta ao contrário. "A escola não é feita para substituir a família", sustenta. Se persistirmos neste modelo, ou seja, na legitimação da ideia de que os pais não têm tempo para cuidar dos filhos, "estaremos a contribuir para que as crianças se transformem em adolescentes sem regras". Como os do filme de Gus Van Sant. "Não é um bom caminho", insiste, preconizando que os pais - "pelo menos um deles" - tem de poder chegar a casa mais cedo para estar com os filhos, "pelo menos até que estes tenham 15 anos".

Uma nova organização social é o que reivindica também a Federação Nacional dos Professores (Fenprof). "Pobres pais e pobre sociedade em que se propõe que as crianças possam ficar doze horas enfiadas numa escola", reage Francisco Almeida, daquele sindicato, para quem o novo Código de Trabalho vem desregular ainda mais o já desregulado mundo laboral na relação que este tem que ter com a família.

"As bolsas de horas vão permitir que as pessoas possam fazer jornadas de trabalho intensivas durante um período e que compensem depois, o que traz óbvias dificuldades de conciliação do trabalho com a família", acrescentou, pondo-se a fazer contas:"Se uma criança fica doze horas na escola, dorme oito e gasta uma hora ou hora e meia nos transportes não tem tempo nenhum para estar com os pais: se assim for, haverá miúdos que não chegam a deitar-se no colo do pai".

Para Nuno Lobo Antunes o ideal seria que fosse diferente. Mas, "num tempo em que para os casais terem um mínimo de qualidade de vida é fundamental a existência de dois salários, e numa altura em que para se ser competitivo no mundo do trabalho tem que se dispor de mais horas do que as que seriam exigíveis, o alargamento do horário das escolas "é uma medida que resulta das necessidades e das circunstâncias do tempo actual".

Nada que ameace traumatizar as crianças. "A verdade é que imensa gente frequentou colégios internos, portanto muito mais longe da família, e não me parece que isso lhes tenha tirado capacidade de imaginação ou autonomia", desdramatiza, lembrando que, "em muitos lares, a escola ainda é o espaço mais saudável a que as crianças têm acesso".

A professora na Escola Superior de Educação de Coimbra, Lucília Salgado, não anda longe deste raciocínio. "O ideal era que os pais estivessem com as crianças, mas isso é uma utopia no cenário actual de falta de emprego em que as empresas não cedem nada e os pais têm que trabalhar o máximo de tempo possível para conseguirem sobreviver". Portanto, ou as escolas se adaptam ou "muitas crianças ficam ao deus-dará ou a ver televisão, já que a rua há muito que deixou de ser espaço de brincadeira".

No cenário actual, o importante é garantir que este alargamento não signifique mais trabalho. "Cinco horas de estudo chegam. O resto do tempo tem que obedecer à regra dos três D's: descansar, divertir e desenvolver", defende Lucília Salgado. Um tempo que "seja de aprendizagem mas com características lúdicas e sem stress escolar".

O investigador Manuel Sarmento, do Instituto de Estudos da Criança, também impõe condições ao aumento da permanência na escola. "As actividades têm que ser organizadas pelas escolas, em articulação com as autarquias, e numa lógica de articulação com a comunidade.
Por outro lado, é crucial que as crianças tenham autonomia para decidir o que querem fazer e que a supervisão a que ficam sujeitas não esmague as suas possibilidades de desenvolvimento enquanto seres sociais".

in Público - versão on-line (link não disponível)


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