quarta-feira, 19 de março de 2008

Não se pode tratar o professor como um produtor comum de bens materiais (José Gil)

Um texto de José Gil, de Dezembro de 2006, tão actual...

NUMA trapalhada de notícias indirectas e desmentidos confusos das autoridades, ficou-se a saber, na semana passada [Dezembro de 2006], que o Ministério da Educação (ME), pelo menos pensou em acabar com as «pausas» lectivas do Natal, do Carnaval e da Páscoa dos professores; além de que estes seriam obrigados a dar oito horas de docência por dia, para além das horas de reuniões, substituição de professores, etc. Que os desmentidos do ME anulem o «anúncio» daquelas decisões (fazendo tudo isto parte, talvez, das técnicas de propaganda do Governo) nada tira ao escândalo que é o poder-se ter pensado em tais medidas (e isto é indesmentível).
Devo dizer que fiquei siderado ao ler o primeiro cabeçalho do «Público», que as publicava. Jamais, assim, a política educativa do Governo criaria as condições para a transformação profunda do ensino de que o país tanto precisa. Porque essas medidas supõem que se trata a escola como uma empresa, e que a preocupação em reconciliar o seu funcionamento obedece a critérios puramente economicistas e estatísticos. Menos oito mil professores o ano passado, menos cinco mil este ano — «uma boa gestão», como diz um secretário de Estado.
Mas gerir uma escola não é gerir uma empresa, e a racionalização do ensino tem de ter em conta um parâmetro «imaterial» — o desejo de aprender e conhecer que, inerente ao desenvolvimento da criança, deveria ser expandido, diversificado e intensificado no básico e no secundário. Este «dado» — muitas vezes esquecido pelas teorias cognitivistas da aprendizagem — implica que se olhe para a relação mestre-aluno com um cuidado especial.
Não se pode tratar o professor como um produtor comum de bens materiais.Significa isto que se deve também pensar atentamente no papel e na acção do professor, quando se concebem planos de transformação da sua docência. O que o professor dá de si, — o investimento da sua disponibilidade, o seu prazer em ensinar, o seu trabalho de preparação das lições, o clima afectivo da aula, o laço que se estabelece entra ele e a turma — são factores decisivos da aprendizagem (para além das suas competências pedagógico-científicas) e implicam uma longa elaboração da sua experiência de docente, da sua inventividade, da sua autenticidade enquanto professor. E tudo isso requer tempo para si próprio e lazer (trabalha-se consciente e inconscientemente, mesmo no ócio).
Um segundo factor marca a singularidade do trabalho do professor: o seu desgaste «psicológico». O investimento na docência convoca forças de toda a ordem, os dons, a capacidade de se autocontrolar e de controlar, a plasticidade para se adaptar a, e lidar com cada aluno em particular, o equilíbrio incessante entre o papel de docente e o de educador, o constante brio que exige de si (o terrível superego do professor que o força a ter a melhor imagem de si para estar em paz consigo mesmo), a responsabilidade que assume pelo aproveitamento dos alunos, etc. Ele não investe uma ou duas «competências», investe na aula a sua existência inteira.
Para obter bons resultados, boas estatísticas, boas médias, é preciso ter bons professores. Para os ter, tem de se considerar a especificidade do seu trabalho.
Não é atafulhando o seu tempo com oito horas diárias, nem cortando as «pausas» — de que precisa como de pão para a boca — que se formarão docentes «competentes». Parece haver uma preocupação obsessiva com a quantidade (em todos os domínios) no ME, que o torna cego às virtudes da qualidade. Que os responsáveis pela educação do nosso país possam ter pensado em esmagar assim os professores é sinal de que qualquer coisa de incompreensivelmente absurdo se está a passar nas suas cabeças.

José Gil
no blogue Diário de uma Professora, de Olinda Gil

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