segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Entrevista de Ana Benavente ao Semanário

Ana Benavente, Ex-secretária de Estado da Educação
2008-12-04 23:37

"Nesta política do PS vejo traços de neo-liberalismo que esperava ver no PSD, e nunca no PS. Um partido de poder, como é o PS, tem fases. Acho que o Partido Socialista está a viver o período em que mais se afastou da sua matriz e da sua história."

"Este Governo tem humilhado os professores de uma maneira inacreditável"

A secretária de Estado dos Governos de António Guterres traça um cenário negro Educação no nosso País e critica as políticas seguidas pelo Ministério: "Este Governo tem humilhado os professores de uma maneira inacreditável". Em entrevista, na qual critica fortemente a orientação ideológica do PS de José Sócrates, afirma ter esperança que, passada a deriva neo-liberal, alguém vai aparecer e unir o partido em seu torno".



Na última edição da revista Opinião Socialista escreveu um artigo em que salienta que a escola não funciona para dar programas mas sim para assegurar as aprendizagens. Não funciona de modo burocrático e centralizado mas sim com autonomia e com flexibilidade. Não vive esmagada por tarefas administrativas mas centra-se nos alunos... Foi esta a escola que deixou quando, em 2001, saiu do Governo?

Não. Mas era a escola que procurava construir com os professores, com os pais, com os autarcas... Estou absolutamente convicta de que a mudança da escola é muito lenta, mas estávamos na direcção certa. Caminho que foi brutalmente interrompido por um Governo PSD, que empobreceu e tirou sentido às áreas não disciplinares e que atacou e maltratou a situação dos professores e das escolas - com uma problemática colocação dos professores. Depois de todos estes incidentes, seguiu-se um Governo de maioria absoluta do PS, que tem vindo a desenvolver uma política educativa da qual eu discordo em absoluto e que considero ser o maior ataque à escola pública - que eu nunca esperei que viesse do PS.

"Maior ataque à escola pública" em que sentido?

No sentido da centralização e de afrontar os professores, que são os primeiros parceiros na melhoria da qualidade do ensino. Este Governo tem humilhado os professores de uma maneira inacreditável, considerando que são uma corporação e não cidadãos organizados. O Governo impôs uma série de medidas, tanto no estatuto da carreira docente, na direcção das escolas ou no ensino especial, que não são feitas com a comunidade educativa mas contra. O próprio estatuto dos professores, com a questão das quotas, é completamente absurdo. Todos gostaríamos que todos os professores fossem muito bons. Dizer que numa escola só pode haver dois professores excelentes e três muito bons não é uma questão de avaliação mas sim de classificação.

Não é assim em toda a Função Pública?

Sim, mas eu acho mal. A dita curva da normalidade é uma maneira de obrigar a realidade a conformar-se a uma visão prévia. Imagine que três alunos têm dezassete num exame. Mas só se pode atribuir dois. Tira-se à sorte e um aluno que teve dezassete passa a ter 15? Acho isto completamente absurdo. O Governo não entende que o trabalho com pessoas, para além de competências científicas e profissionais, exige muito das pessoas. Os professores são uma das profissões em que há maior stress, porque todas as mudanças sociais chegam à escola.

As escolas vão sofrendo as evoluções da sociedade...

O modo como as famílias, hoje, estão mais ausentes; o modo como os jovens têm uma relação com os adultos muito diferente do que era há cinquenta anos. Na escola é a única instituição onde toda a população está, é universal. E os professores têm de lidar com essa realidade. E pensar, por exemplo, que a indisciplina resulta de um defeito dos professores está completamente errado.

Penso que o cenário negro que traça estará, também, na base do conflito entre professores e Ministério. Como é que se sai deste impasse?

Acho muito difícil, neste momento, sair de uma maneira positiva - muito mal já foi feito. O PS não tem sabido gerir a sua maioria absoluta. As negociações fazem-se antes de aplicar as medidas e não depois de se verificar que elas não são passíveis de serem aplicadas.

Não há, igualmente, alguma intransigência por parte dos sindicatos?

Não há intransigência por parte dos sindicatos, eles até têm vindo a reboque dos professores. Os sindicatos tardaram a manifestar-se e aceitaram, protestando, o estatuto dos professores titulares e não titulares - que criou situações de grande injustiça. Não me passaria pela cabeça que o Ministério pudesse impor às escolas um modelo de avaliação que não experimentou. Por que não contactou uma escola, em cada Direcção Regional, que estivesse disponível para o ajudar a ver, na prática, como é que se traduziria o modelo de avaliação?

Mas tem de existir alguma solução...

Neste momento, as posições estão muito extremadas. O Governo está a tentar suavizar a situação pondo o secretário de Estado adjunto na primeira linha e não a ministra. Mas o mal, à escola pública, já está feito. Há, inclusivamente, alguns sinais de mercantilização - que também existem em outros países -, como foi o caso do inglês. Uma medida bem-vinda mas que foi negociada com privados, com escolas de inglês.

O PS quer assassinar a escola pública?

Nesta política do PS vejo traços de neo-liberalismo que esperava ver no PSD, e nunca no PS. Um partido de poder, como é o PS, tem fases. Acho que o Partido Socialista está a viver o período em que mais se afastou da sua matriz e da sua história.

Voltando à Educação...

A escola está a viver um momento muito difícil. Mas se traço um cenário negro, gostaria de salientar que também há boas práticas - há escolas a funcionar bem. Sempre tive a esperança de que para transformar a escola é preciso partir daquilo que melhor se faz, para que essas boas práticas possam servir de inspiração. Não por decisões tomadas em gabinete ou ordens abstractas e teóricas. Tem de ser numa aprendizagem que os professores fazem de outras escolas. Caímos numa situação absurda - que nunca pensei ver em Portugal - que é o Ministério tomar decisões e depois vir explicar qual o sentido dessas decisões. Aconteceu com o estatuto do aluno.

Em sua opinião, se não existir avaliação, quais os cenários que se avistam?

Não haver avaliação dos professores foi um mal entendido que chegou à opinião pública. Mas não é verdade, pois havia uma avaliação dos professores. Os professores tinham escalões, que percorriam, e para passar de um escalão para o outro tinham determinadas obrigações: formação contínua, relatórios que produziam sobre a sua actividade, projectos na área da inovação ou do ambiente em que participavam e o facto dos mestrados e dos doutoramentos serem reconhecidos para efeitos de carreira. Se o Governo suspendesse a avaliação, continuaria em vigor o modelo que existia e haveria tempo para, de um lado e do outro, aparecerem propostas, serem devidamente negociadas, experimentadas e generalizadas se forem viáveis. Esta seria a única maneira de sanear a situação.

Em termos políticos, esta equipa do Ministério ainda tem condições para continuar as suas funções?

Teria de haver uma mudança das políticas. Não gosto de falar em mudança de protagonistas sem mudança das políticas. Se é para vir outra pessoa e retomar as mesmas políticas, não resolve coisa nenhuma; se vier uma nova equipa e com outro estilo, acho que seria bem-vindo. Em democracia, nunca um Governo pode ter medo de dizer que se enganou e que errou. Eu própria, nos seis anos que passei no Ministério, também cometi muito erros. Coisas que nos parecem certas, que propomos e que são mal comunicadas e mal interpretadas.

Em seu entender, tem algum sentido as movimentações da esquerda (como o debate de dia 14 de Dezembro) culminarem na criação de um novo partido?

Não. Por duas razões: o Partido Socialista vai viver outras fases e dividir o PS não me parece bem e os partidos que têm sido criados (desde o PRD ao PND) têm mostrado que não há espaço para mais partidos em Portugal. Estes movimentos, pelo contrário, criam uma área de expressão que talvez evite a criação de outro partido. A esquerda do Partido Socialista sente-se órfã porque o PS está a Governar muito à direita. Se o partido ocupar o espaço que corresponde à sua base social de apoio, encontraremos o nosso espaço dentro do PS.

Apoiaria Manuel Alegre?

Tenho simpatia pelas posições dele - conheço-o desde os tempos do exílio - mas não o apoiei para as eleições presidenciais e não participo no seu movimento.

Falou na refundação do PS. António José Seguro poderá ser a pessoa ideal para a fazer?

Não sei... Ainda não vi o António José Seguro tomar qualquer posição que indique vontade de avançar. Tenho esperança que, passado este momento e esta deriva neo-liberal, alguém vai aparecer e unir o partido em seu torno. Reencontrar o PS de esquerda, que considero um partido com uma dimensão social forte, mais do lado do povo do que do lado dos banqueiros - não querendo dizer que o Governo não se tem de preocupar com todas as instituições. O Governo do PS, infelizmente, tem estado demasiado do lado do poder do grande capital e da finança e muito pouco do lado das pessoas. Deriva neo-liberal que o PS - há semelhança de outros partidos socialistas - vai pagar muito caro.

Acredita que esse alinhamento pode ser feito ainda antes de 2009?

Penso que não. Embora os sinais de dificuldades no Governo se acentuem. Sente-se isso em muitos domínios para além da Educação, nomeadamente no emprego. A questão das minas de Aljustrel está muito mal explicada, as decisões que são tomadas relativamente aos contentores na zona de Alcântara também... Já há muitos sinais de que as pessoas não estão de acordo e que começam a achar que esta maioria absoluta sem diálogo não é firmeza. A sociedade portuguesa está sem esperança e tristonha. E há algum receio, em pessoas que têm as suas dependências - que nós compreendemos -, de se manifestarem e de dizerem exactamente o que pensam. Acho isso muito perigoso e frustrante, do ponto de vista da cidadania, numa sociedade democrática.

Já equacionou abandonar o PS e rasgar o cartão de militante?

Não... O cartão até é plastificado. Não pensei. Sempre encontrei o meu espaço dentro do Partido Socialista, com discordâncias mais ou menos importantes. Considero a actual discordância muito importante, mas atrás de tempos, tempos vêm.

in Semanário - ler entrevista

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