quinta-feira, 15 de maio de 2008

Do Tempo em que (não) vivemos

Um texto que gostaria de ter escrito (Vergílio Ferreira, Pensar, Lisboa, Bertrand, 1992):

Este é o tempo do insólito, do vigário, do capricho, da mentira, da falsificação, do cheque sem cobertura, da banha-de-cobra. Não temos um estalão para nada, a própria Terra não garante a estabilidade do metro, o sistema de pesos e medidas é duvidoso que funcione, tudo existe apenas em função de si e não de qualquer outra coisa que lhe confira validade. Hoje tudo é possível porque nada é possíve. Hoje a verdade não se demora até ser mentira mas uma e outra se convertem mutuamente e são ambas válidas na sua mútua referência, sendo a mentira verdade e ao contrário. Hoje é o tempo dos aventureiros, do medíocre sagaz, da esperteza, que é a inteligência da astúcia. Hoje é o tempo do curandeiro, do endireita, do bruxo, do vidente, do profeta, do prestidigitador. Hoje é o tempo de se ser estúpido porque o inteligente não há razão para não ser mais estúpido do que ele. Hoje é o tempo de todos os caminhos estarem desimpedidos porque não é possível um sistema alfandegário. Hoje é o tempo de todos os contrabandos porque não há razão para um sistema fiscal. Hoje é o tempo da noite para todos os gatos terem a mesma identidade. Hoje é o tempo de tudo ser o tempo de. Hoje é o tempo de tudo, portanto de nada. Hoje é o tempo de se não ser. Levanta em ti, se puderes, o que te resta de homem, para seres alguma coisa.


in Blog terrear, post de José Matias Alves

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