A balbúrdia na escola
António Barreto
Os direitos dos alunos, consagrados no respectivo estatuto, são os mais abrangentes e absurdos que se possa imaginar.
As cenas de pancadaria na escola têm comovido a opinião. A última ocorreu numa escola do Porto e foi devidamente filmada por um colega. Em poucas horas, o clip correu mundo através do YouTube. A partir daí, choveram as análises e os comentários. Toda a gente procura responsáveis, culpados e causas. Os arguidos são tantos quanto se possa imaginar: os jovens, os professores, os pais, o ministério e os políticos. E a sociedade em geral, evidentemente. As causas são também as mais diversas: a democracia, os costumes contemporâneos, a cultura jovem, o dinheiro, a televisão, a publicidade, a Internet, a permissividade, a falta de valores, os "bairros", o rap, os imigrantes, a droga e o sexo. Para a oposição, a culpa é do Governo. Para o Governo, a culpa é do Governo anterior. O trivial
Deve haver um pouco disso tudo, o que torna as coisas mais complicadas - sobretudo quando se pretende tomar medidas ou conter a vaga crescente de violência e balbúrdia. Se as causas são múltiplas, por onde começar? Mais repressão? Mais diálogo? Mais disciplina? Mais co-gestão? Há aqui matéria para a criação de várias comissões, a elaboração de um livro branco, a aprovação de novas leis e a realização de inúmeros estudos. Até às eleições, haverá debates parlamentares sobre o tema. Não tenho a certeza, nem sequer a esperança, que o problema se resolva a breve prazo.
De qualquer maneira, a ocasião era calhada para voltar a ver a obra-prima do esforço legislativo nacional, o famoso "estatuto do aluno". A sua última versão entrou em vigor em finais de Janeiro, sendo uma correcção de outro diploma, da mesma natureza, de 2002. Trata-se de uma espécie de carta constitucional de direitos e deveres, a que não falta um regulamento disciplinar. Não se pode dizer que fecha a abóbada do edifício legal educativo, porque simplesmente tal edifício não existe. É mais um produto da enxurrada permanente de leis, normas e regras que se abate sobre as escolas e a sociedade. É um dos mais monstruosos documentos jamais produzidos pela administração pública portuguesa. Mal escrito, por vezes incompreensível, repete-se na afirmação de virtudes. Faz afirmações absolutamente disparatadas, como, por exemplo, quando considera que "a assiduidade (...) implica uma atitude de empenho intelectual e comportamental adequada..."! Cria deveres inéditos aos alunos, tais como o de se "empenhar na sua formação integral"; o de "guardar lealdade para com todos os membros da comunidade educativa"; ou o de "contribuir para a harmonia da convivência escolar". E também os obriga a conhecer e cumprir este "estatuto do aluno", naquele que deve ser o pior castigo de todos! Quanto aos direitos dos alunos, são os mais abrangentes e absurdos que se possa imaginar, incluindo os de participar na elaboração de regulamentos e na gestão e administração da escola, assim como de serem informados sobre os critérios da avaliação, os objectivos dos programas, dos cursos e das disciplinas, o modo de organização do plano de estudos, a matrícula, o abono de família e tudo o que seja possível inventar, incluindo as normas de segurança dos equipamentos e os planos de emergência!
Trata-se de um estatuto burocrático, processual e confuso. O regime de faltas, que decreta, é infernal. Ninguém, normalmente constituído, o pode perceber ou aplicar. Os alunos que ultrapassem o número de faltas permitido podem recuperar tudo com uma prova. As faltas justificadas podem passar a injustificadas e vice-versa. As decisões sobre as faltas dos alunos e o seu comportamento sobem e descem do professor ao director de turma, deste ao conselho de turma, destes à direcção da escola e eventualmente ao conselho pedagógico. As decisões disciplinares são longas, morosas e processualmente complicadas, podendo sempre ser alteradas pelos sistemas de recurso ou de vaivém entre instâncias escolares. Concebem-se duas espécies de medidas disciplinares, as "correctivas" e as "sancionatórias". Por vezes, as diferenças são imperceptíveis. Mas a sua aplicação, em respeito pelas normas processuais, torna inútil qualquer esforço. As medidas disciplinares são quase todas precedidas ou acompanhadas de processos complicados, verdadeiros dissuasores de todo o esforço disciplinar. As medidas disciplinares dependem de várias instâncias, do professor aos órgãos da turma, destes aos vários órgãos da escola e desta às direcções regionais. Os procedimentos disciplinares são relativos ao que tradicionalmente se designa por mau comportamento, perturbação de aula, agressão, roubo ou destruição de material, isto é, o dia-a-dia na escola. Mas a sua sanção é de tal modo complexa que deixará simplesmente de haver disciplina ou sanção.
O estatuto cria um regime disciplinar em tudo semelhante ao que vigora, por exemplo, para a administração pública ou para as relações entre administração e cidadãos. Pior ainda, é criado um regime disciplinar e sancionatório decalcado sobre os sistemas e os processos judiciais. Os autores deste estatuto revelam uma total e absoluta ignorância do que se passa nas escolas, do que são as escolas. Oscilando entre a burocracia, a teoria integradora das ciências de educação, a ideia de que existe uma democracia na sala de aula e a convicção de que a disciplina é um mal, os legisladores do ministério (deste ministério e dos anteriores) produziram uma monstruosidade: senil na concepção burocrática, administrativa e judicial; adolescente na ideologia; infantil na ambição. O estatuto não é a causa dos males educativos, até porque nem sequer está em vigor na maior parte das escolas. Também não é por causa do estatuto que há, ou não há, pancadaria nas escolas. O estatuto é a consequência de uma longa caminhada e será, de futuro, o responsável imediato pela impossibilidade de administrar a disciplina nas escolas. O estatuto não retira a autoridade na escola (aos professores, aos directores, aos conselhos escolares). Não! Apenas confirma o facto de já não a terem e de assim perderem as veleidades de voltar a ter. O processo educativo, essencialmente humano e pessoal, é transformado num processo "científico", "técnico", desumanizado, burocrático e administrativo que dissolve a autoridade e esbate as responsabilidades. Se for lido com atenção, este estatuto revela que a sua principal inspiração é a desconfiança dos professores. Quem fez este estatuto tinha uma única ideia na cabeça: é preciso defender os alunos dos professores que os podem agredir e oprimir. Mesmo que nada resolva, a sua revogação é um gesto de saúde mental pública.
António Barreto
Os direitos dos alunos, consagrados no respectivo estatuto, são os mais abrangentes e absurdos que se possa imaginar.
As cenas de pancadaria na escola têm comovido a opinião. A última ocorreu numa escola do Porto e foi devidamente filmada por um colega. Em poucas horas, o clip correu mundo através do YouTube. A partir daí, choveram as análises e os comentários. Toda a gente procura responsáveis, culpados e causas. Os arguidos são tantos quanto se possa imaginar: os jovens, os professores, os pais, o ministério e os políticos. E a sociedade em geral, evidentemente. As causas são também as mais diversas: a democracia, os costumes contemporâneos, a cultura jovem, o dinheiro, a televisão, a publicidade, a Internet, a permissividade, a falta de valores, os "bairros", o rap, os imigrantes, a droga e o sexo. Para a oposição, a culpa é do Governo. Para o Governo, a culpa é do Governo anterior. O trivial
Deve haver um pouco disso tudo, o que torna as coisas mais complicadas - sobretudo quando se pretende tomar medidas ou conter a vaga crescente de violência e balbúrdia. Se as causas são múltiplas, por onde começar? Mais repressão? Mais diálogo? Mais disciplina? Mais co-gestão? Há aqui matéria para a criação de várias comissões, a elaboração de um livro branco, a aprovação de novas leis e a realização de inúmeros estudos. Até às eleições, haverá debates parlamentares sobre o tema. Não tenho a certeza, nem sequer a esperança, que o problema se resolva a breve prazo.
De qualquer maneira, a ocasião era calhada para voltar a ver a obra-prima do esforço legislativo nacional, o famoso "estatuto do aluno". A sua última versão entrou em vigor em finais de Janeiro, sendo uma correcção de outro diploma, da mesma natureza, de 2002. Trata-se de uma espécie de carta constitucional de direitos e deveres, a que não falta um regulamento disciplinar. Não se pode dizer que fecha a abóbada do edifício legal educativo, porque simplesmente tal edifício não existe. É mais um produto da enxurrada permanente de leis, normas e regras que se abate sobre as escolas e a sociedade. É um dos mais monstruosos documentos jamais produzidos pela administração pública portuguesa. Mal escrito, por vezes incompreensível, repete-se na afirmação de virtudes. Faz afirmações absolutamente disparatadas, como, por exemplo, quando considera que "a assiduidade (...) implica uma atitude de empenho intelectual e comportamental adequada..."! Cria deveres inéditos aos alunos, tais como o de se "empenhar na sua formação integral"; o de "guardar lealdade para com todos os membros da comunidade educativa"; ou o de "contribuir para a harmonia da convivência escolar". E também os obriga a conhecer e cumprir este "estatuto do aluno", naquele que deve ser o pior castigo de todos! Quanto aos direitos dos alunos, são os mais abrangentes e absurdos que se possa imaginar, incluindo os de participar na elaboração de regulamentos e na gestão e administração da escola, assim como de serem informados sobre os critérios da avaliação, os objectivos dos programas, dos cursos e das disciplinas, o modo de organização do plano de estudos, a matrícula, o abono de família e tudo o que seja possível inventar, incluindo as normas de segurança dos equipamentos e os planos de emergência!
Trata-se de um estatuto burocrático, processual e confuso. O regime de faltas, que decreta, é infernal. Ninguém, normalmente constituído, o pode perceber ou aplicar. Os alunos que ultrapassem o número de faltas permitido podem recuperar tudo com uma prova. As faltas justificadas podem passar a injustificadas e vice-versa. As decisões sobre as faltas dos alunos e o seu comportamento sobem e descem do professor ao director de turma, deste ao conselho de turma, destes à direcção da escola e eventualmente ao conselho pedagógico. As decisões disciplinares são longas, morosas e processualmente complicadas, podendo sempre ser alteradas pelos sistemas de recurso ou de vaivém entre instâncias escolares. Concebem-se duas espécies de medidas disciplinares, as "correctivas" e as "sancionatórias". Por vezes, as diferenças são imperceptíveis. Mas a sua aplicação, em respeito pelas normas processuais, torna inútil qualquer esforço. As medidas disciplinares são quase todas precedidas ou acompanhadas de processos complicados, verdadeiros dissuasores de todo o esforço disciplinar. As medidas disciplinares dependem de várias instâncias, do professor aos órgãos da turma, destes aos vários órgãos da escola e desta às direcções regionais. Os procedimentos disciplinares são relativos ao que tradicionalmente se designa por mau comportamento, perturbação de aula, agressão, roubo ou destruição de material, isto é, o dia-a-dia na escola. Mas a sua sanção é de tal modo complexa que deixará simplesmente de haver disciplina ou sanção.
O estatuto cria um regime disciplinar em tudo semelhante ao que vigora, por exemplo, para a administração pública ou para as relações entre administração e cidadãos. Pior ainda, é criado um regime disciplinar e sancionatório decalcado sobre os sistemas e os processos judiciais. Os autores deste estatuto revelam uma total e absoluta ignorância do que se passa nas escolas, do que são as escolas. Oscilando entre a burocracia, a teoria integradora das ciências de educação, a ideia de que existe uma democracia na sala de aula e a convicção de que a disciplina é um mal, os legisladores do ministério (deste ministério e dos anteriores) produziram uma monstruosidade: senil na concepção burocrática, administrativa e judicial; adolescente na ideologia; infantil na ambição. O estatuto não é a causa dos males educativos, até porque nem sequer está em vigor na maior parte das escolas. Também não é por causa do estatuto que há, ou não há, pancadaria nas escolas. O estatuto é a consequência de uma longa caminhada e será, de futuro, o responsável imediato pela impossibilidade de administrar a disciplina nas escolas. O estatuto não retira a autoridade na escola (aos professores, aos directores, aos conselhos escolares). Não! Apenas confirma o facto de já não a terem e de assim perderem as veleidades de voltar a ter. O processo educativo, essencialmente humano e pessoal, é transformado num processo "científico", "técnico", desumanizado, burocrático e administrativo que dissolve a autoridade e esbate as responsabilidades. Se for lido com atenção, este estatuto revela que a sua principal inspiração é a desconfiança dos professores. Quem fez este estatuto tinha uma única ideia na cabeça: é preciso defender os alunos dos professores que os podem agredir e oprimir. Mesmo que nada resolva, a sua revogação é um gesto de saúde mental pública.
in Público, domingo, 30 de Março de 2008
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