Com os nossos cumprimentos, publicamos o seguinte post, publicado no Blog Dardomeu pelo colega Luís Costa:
No galinheiro da Quinta do Soslaio, estava a bicharada toda em alvoroço. A coisa andava feia e a dar para torto, desde que a D. Gertrudes, a proprietária — e viúva de três maridos mortos em circunstâncias muito esquisitas — fora tomar chá a casa de uma amiga, também ela detentora de idêntica herdade.
D. Gertrudes, a ambiciosa e não menos invejosa D. Maria Gertrudes Levada do Caneco, ficara possessa de raiva quando soubera, pela língua bífida da inocente amiga, que as suas galinhas eram as menos poedeiras das quintas daquela aldeia e arrabaldes.
— D’aurdeia e arrabaldesjjjjê!!! — repetira ela, vezes sem conta, a caminho de casa, dislálica de incredulidade. — Indes ver como se enxofra, minhas galinhas-chocas! Ai se indes!
A danada da mulher chegara irreconhecível desse convívio: calcorreara o carreiro da horta batendo com as alpercatas no chão — olhos flamejantes, dardejantes de raiva, narinas inchadas, como se fossem fumegar; enxotara os cães, que iam, como sempre, lamber-lhe as mãos e roçar-lhe o pêlo nas pernas; pontapeara os caldeiros do farelo e da lavadura; batera estrondosamente a porta de casa e… ninguém mais vira, ou ouvira qualquer sinal de vida da velha bruxa. Os galináceos até ousaram pensar que a tirana fora lavar roupa no rio Letes, mas nem tempo tiveram para discernir se tal lhes ocorrera no sono ou na realidade.
No dia seguinte, aos primeiros sinais do parto do sol, até o galo fora apanhado — crista murcha e descaída sobre a cabeça desgrenhada — a cabecear de sono e com as persianas oculares ainda corridas. Os urros histéricos daquela mulher, secundados pelo servil ladrar aflitivo dos rafeiros, transformaram a penumbrosa capoeira num turbilhão de asas, penas, palhas e mil e um cacarejos. Algumas galinhas, acometidas de incontinência súbita, chegaram mesmo a pôr ovos prematuros, que se estatelaram no térreo rés-do-chão. Friamente e à vista de toda a galinhada, a simpática Gertrudinhas torcera-lhes o pescoço e levara-as amontoadas na carreta ferrugenta, para as vender ao Baltasar, o dono da casa de pasto “Pitas e Sopitas”. Pouco tempo volvido, regressara ao amedrontado galinheiro com brilhantes ideias reformistas: de castigo, a ração iria ser reduzida, porque as “piolhosas”, as “calaceiras” não andavam a pôr nada que se visse; queria mais um ovo por galinha na primeira semana, dois na segunda, três na terceira e “por aí adiante” até porem o dobro do que andavam a pôr “naquela altura”; empossava a galinha “Pitazita” como capataz do galinheiro e “num se falaba mais naquilo”; ela teria o dobro do farelo e umas doses extra de milho por semana, se os desejados “obos” aparecessem; ela poderia dar as bicadas que fossem necessárias para meter na linha toda e qualquer galinha desalinhada ou com menos vontade de pôr; a “capataza” escolheria uma “galinha-chefe” de cada secção de ninhos, para…enfim, para o que fosse preciso, mas sem doses de nada, porque “a coisa estaba feia, muito feia”! “Bastaba-les o títalo e o poder qu’isso daba”!
— Toca a pôr, toca a pôr! — dissera ela, secundada pelo rosnar raivoso dos seus rafeiros sujos e esquálidos, virando as costas aos galináceos encolhidos, em estado de estupor.
E era por isto, apenas por isto, que a bicharada estava em alvoroço. E, depois das primeiras pragas dirigidas à velha bruxa, o cacarejar foi direitinho para a “Pitazita” e suas acólitas — as nomeadas — que eram, nem mais nem menos, as “delambidas” que, antes, passavam as tardes com ela, empoleiradas na figueira em cacarejo baixinho, dizendo mal de todos os animais da quinta. E logo ela, que já não sabia sequer o que era pôr ovos, e muito menos pôr ovos naquele esterqueiro, que já não era limpo desde que o pobre do Florêncio — o último marido — morrera! A galinhada ainda chegou a propor-lhes que não aceitassem tão “sujos” cargos, mas elas logo declinaram tal hipótese, alegando que, se não fossem elas, seriam os rafeiros ou bestas ainda piores. E, depois… aquela carreta… Enfim, se toda a bicharada soubesse quanto lhes custava tal missão, quanto sofriam em segredo!…
— Isto não pode ser! Aqui fechadas, nesta imundice, sem quase nos podermos mexer, nós não podemos ser mais poedeiras! Já não sei o que é abrir as asas há… há… muito tempo! — desabafava de indignação uma galinha já com muitas luas vividas.
— Pois é — acrescentava outra, que fora oferecida por uma proprietária de uma quinta vizinha — mas, na quinta de onde eu vim, comíamos muito mais e éramos livres, andávamos à vontade pelo campo: ele era couves, ele era alfaces, ele era… o que houvesse! O que houvesse, nós comíamos! E o nosso galinheiro estava sempre limpo! Lá até dava gosto pôr e púnhamos que era um regalo! Vejam só: eu, desde que vim para aqui, só pus um ovo… e mirradito!
— E não há direito! Não é justo que a “Pitazita” coma a ração que nos tiraram a nós! — cacarejou uma galinha garnisé, a “Vermelha”, de papo levantado. — Ela, que já nem ovos põe! E não é justo que as “nomeadas” nos andem sempre a bicar, se nem sequer põem mais do que nós! E eu sei que, às escondidas, quando estamos todas aqui entaladas a puxar, a ver se sai alguma coisa, as aleivosas atiram-se à ração da “Pitazita”, que finge que não vê e cacareja para o lado. Não há direito!
— Pois não, pois não, pois não… — repetiu o galinheiro em coro, incapaz de ir mais além na argumentação e nos protestos. Mas… logo surgiu, saída do seu fojo escuro e fedorento a poderosa “Pitazita”. E toda a bicharada se calou, meteu o bico debaixo das asas encolhidas e, à rasca, puxou, puxou, até parir um ovo qualquer, mesmo sem casca. Ao primeiro cacarejar de alarme, apareceu a figura medonha de Gertrudes — galochas pretas até aos joelhos encardidos, mangas arregaçadas. Deitou as manápulas à “Vermelha” e… foi o que sabemos: acabou no “Pitas e Sopitas”.
O galo, esse, andava indiferente. Como a Natureza não lhe reservara tal obrigação, continuava a deitar-se e a levantar-se com as galinhas, que ele galava e voltava a galar com toda a satisfação…
No galinheiro da Quinta do Soslaio, estava a bicharada toda em alvoroço. A coisa andava feia e a dar para torto, desde que a D. Gertrudes, a proprietária — e viúva de três maridos mortos em circunstâncias muito esquisitas — fora tomar chá a casa de uma amiga, também ela detentora de idêntica herdade.
D. Gertrudes, a ambiciosa e não menos invejosa D. Maria Gertrudes Levada do Caneco, ficara possessa de raiva quando soubera, pela língua bífida da inocente amiga, que as suas galinhas eram as menos poedeiras das quintas daquela aldeia e arrabaldes.
— D’aurdeia e arrabaldesjjjjê!!! — repetira ela, vezes sem conta, a caminho de casa, dislálica de incredulidade. — Indes ver como se enxofra, minhas galinhas-chocas! Ai se indes!
A danada da mulher chegara irreconhecível desse convívio: calcorreara o carreiro da horta batendo com as alpercatas no chão — olhos flamejantes, dardejantes de raiva, narinas inchadas, como se fossem fumegar; enxotara os cães, que iam, como sempre, lamber-lhe as mãos e roçar-lhe o pêlo nas pernas; pontapeara os caldeiros do farelo e da lavadura; batera estrondosamente a porta de casa e… ninguém mais vira, ou ouvira qualquer sinal de vida da velha bruxa. Os galináceos até ousaram pensar que a tirana fora lavar roupa no rio Letes, mas nem tempo tiveram para discernir se tal lhes ocorrera no sono ou na realidade.
No dia seguinte, aos primeiros sinais do parto do sol, até o galo fora apanhado — crista murcha e descaída sobre a cabeça desgrenhada — a cabecear de sono e com as persianas oculares ainda corridas. Os urros histéricos daquela mulher, secundados pelo servil ladrar aflitivo dos rafeiros, transformaram a penumbrosa capoeira num turbilhão de asas, penas, palhas e mil e um cacarejos. Algumas galinhas, acometidas de incontinência súbita, chegaram mesmo a pôr ovos prematuros, que se estatelaram no térreo rés-do-chão. Friamente e à vista de toda a galinhada, a simpática Gertrudinhas torcera-lhes o pescoço e levara-as amontoadas na carreta ferrugenta, para as vender ao Baltasar, o dono da casa de pasto “Pitas e Sopitas”. Pouco tempo volvido, regressara ao amedrontado galinheiro com brilhantes ideias reformistas: de castigo, a ração iria ser reduzida, porque as “piolhosas”, as “calaceiras” não andavam a pôr nada que se visse; queria mais um ovo por galinha na primeira semana, dois na segunda, três na terceira e “por aí adiante” até porem o dobro do que andavam a pôr “naquela altura”; empossava a galinha “Pitazita” como capataz do galinheiro e “num se falaba mais naquilo”; ela teria o dobro do farelo e umas doses extra de milho por semana, se os desejados “obos” aparecessem; ela poderia dar as bicadas que fossem necessárias para meter na linha toda e qualquer galinha desalinhada ou com menos vontade de pôr; a “capataza” escolheria uma “galinha-chefe” de cada secção de ninhos, para…enfim, para o que fosse preciso, mas sem doses de nada, porque “a coisa estaba feia, muito feia”! “Bastaba-les o títalo e o poder qu’isso daba”!
— Toca a pôr, toca a pôr! — dissera ela, secundada pelo rosnar raivoso dos seus rafeiros sujos e esquálidos, virando as costas aos galináceos encolhidos, em estado de estupor.
E era por isto, apenas por isto, que a bicharada estava em alvoroço. E, depois das primeiras pragas dirigidas à velha bruxa, o cacarejar foi direitinho para a “Pitazita” e suas acólitas — as nomeadas — que eram, nem mais nem menos, as “delambidas” que, antes, passavam as tardes com ela, empoleiradas na figueira em cacarejo baixinho, dizendo mal de todos os animais da quinta. E logo ela, que já não sabia sequer o que era pôr ovos, e muito menos pôr ovos naquele esterqueiro, que já não era limpo desde que o pobre do Florêncio — o último marido — morrera! A galinhada ainda chegou a propor-lhes que não aceitassem tão “sujos” cargos, mas elas logo declinaram tal hipótese, alegando que, se não fossem elas, seriam os rafeiros ou bestas ainda piores. E, depois… aquela carreta… Enfim, se toda a bicharada soubesse quanto lhes custava tal missão, quanto sofriam em segredo!…
— Isto não pode ser! Aqui fechadas, nesta imundice, sem quase nos podermos mexer, nós não podemos ser mais poedeiras! Já não sei o que é abrir as asas há… há… muito tempo! — desabafava de indignação uma galinha já com muitas luas vividas.
— Pois é — acrescentava outra, que fora oferecida por uma proprietária de uma quinta vizinha — mas, na quinta de onde eu vim, comíamos muito mais e éramos livres, andávamos à vontade pelo campo: ele era couves, ele era alfaces, ele era… o que houvesse! O que houvesse, nós comíamos! E o nosso galinheiro estava sempre limpo! Lá até dava gosto pôr e púnhamos que era um regalo! Vejam só: eu, desde que vim para aqui, só pus um ovo… e mirradito!
— E não há direito! Não é justo que a “Pitazita” coma a ração que nos tiraram a nós! — cacarejou uma galinha garnisé, a “Vermelha”, de papo levantado. — Ela, que já nem ovos põe! E não é justo que as “nomeadas” nos andem sempre a bicar, se nem sequer põem mais do que nós! E eu sei que, às escondidas, quando estamos todas aqui entaladas a puxar, a ver se sai alguma coisa, as aleivosas atiram-se à ração da “Pitazita”, que finge que não vê e cacareja para o lado. Não há direito!
— Pois não, pois não, pois não… — repetiu o galinheiro em coro, incapaz de ir mais além na argumentação e nos protestos. Mas… logo surgiu, saída do seu fojo escuro e fedorento a poderosa “Pitazita”. E toda a bicharada se calou, meteu o bico debaixo das asas encolhidas e, à rasca, puxou, puxou, até parir um ovo qualquer, mesmo sem casca. Ao primeiro cacarejar de alarme, apareceu a figura medonha de Gertrudes — galochas pretas até aos joelhos encardidos, mangas arregaçadas. Deitou as manápulas à “Vermelha” e… foi o que sabemos: acabou no “Pitas e Sopitas”.
O galo, esse, andava indiferente. Como a Natureza não lhe reservara tal obrigação, continuava a deitar-se e a levantar-se com as galinhas, que ele galava e voltava a galar com toda a satisfação…
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