Joaquim Azevedo: “A educação para a autoridade é um valor que tem vindo a ser descurado”
Sara R. Oliveira 2008-05-21
Joaquim Azevedo, director da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica, considera que o Ministério da Educação não confia sistematicamente na autoridade e profissionalismo dos professores.
Joaquim Azevedo, professor catedrático e director da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica (UC), afirma que o "ovo" onde a violência germina não está apenas nas escolas, mas em toda a sociedade. O ex-secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário de um dos governos de Cavaco Silva garante que o episódio da Secundária Carolina Michaëlis não é "inédito". "A má educação choca sempre", comenta. Na sua opinião, há questões que ajudam a explicar a perda de autoridade dos professores, como a desarticulação entre escolas e famílias e o aumento da heterogeneidade das turmas. "Se os professores forem descredibilizados socialmente, como poderemos favorecer a sua autoridade nas escolas?", pergunta.
O ex-director-geral do Ministério da Educação, entre 1988 e 1992, assegura que a avaliação dos professores é incontornável. Em seu entender, o desempenho da classe docente tem de ser avaliado porque o mérito deve ser destacado e, além disso, é preciso perceber o que é essa excelência que se espera de quem tem a missão de ensinar. O docente afirma ainda que o Estatuto do Aluno deve ser revisto, por se tratar de um modelo com vários "desvios".
Professor catedrático, licenciado em História e doutorado em Ciências da Educação, considera que a política educativa em Portugal tem revelado graves problemas por várias razões. Como pensar que todas as escolas são iguais, ou se querer colocar em prática um modelo de mudança centralista ou ainda por não haver liberdade para avaliar e melhorar projectos pedagógicos diferenciados. O docente da UC adianta que é necessário investir cada vez mais na educação. "Precisamos de mais sociedade na educação, agora que há muito mais educação na sociedade portuguesa", defende.
EDUCARE.PT: A violência nas escolas está na ordem do dia. Na sua opinião, como se deve abordar este assunto?
Joaquim Azevedo: A violência na sociedade está na ordem do dia. Cresce e floresce. Como é que poderia não estar presente também nas escolas? O ovo onde ela germina não está na escola, está em toda a sociedade, nas guerras, nos media, nas relações humanas.
E: O País ficou chocado com o que se passou na Secundária Carolina Michaëlis. Como digeriu o episódio?
JA: A falta de educação familiar tem originado episódios semelhantes, há muitos anos, nas nossas escolas. Não se trata de algo inédito. Os media hoje dão uma nova repercussão a fenómenos antigos. E isso surpreende-nos. A má educação choca sempre.
E: Nos últimos anos, o professor tem vindo a perder autoridade?
JA: A educação para a autoridade, que é fruto de uma cuidada educação familiar e de um adequado desempenho das instituições sociais, constitui um valor que tem vindo a ser descurado. Muitas famílias navegam sem saber como o fazer e muitas instituições tremem no exercício dessa função. Confunde-se autoritarismo com autoridade e resvala-se com facilidade para a permissividade. O problema é matricialmente de âmbito familiar. E é aí que tem, em primeiro lugar, de ser debatido (nomeadamente também no plano da educação familiar). A perda de autoridade dos professores tem também que ver com outras questões, tais como o aumento da heterogeneidade das turmas, o regime de faltas dos alunos, a desarticulação entre escolas e famílias, a falta de uma cuidada formação inicial e de uma cuidada selecção sobre quem pode ser professor, a falta de focagem profissional dos professores em torno do núcleo da sua missão educativa específica, exigindo escolas mais complexas em termos humanos e profissionais, face a um tempo tão complexo em termos sociais.
E: Como analisa a avaliação da classe docente proposta pela tutela? Os professores estão, de facto, preparados para avaliar os seus colegas?
JA: Se não estão, devem vir a estar. Não há outra solução. Os professores, como quaisquer outros servidores públicos do Estado, têm de ser avaliados no seu desempenho profissional. O mérito tem de ser premiado, de outro modo nunca se perceberá o que é a excelência que desejamos e esperamos dos professores.
E: Fala-se que o novo Estatuto do Aluno é um pouco permissivo, concretamente no que diz respeito às faltas. Considera que a sua aplicação poderá trazer vantagens?
JA: Creio que está mal feito e que devia ser revisto, tal como tem sido sugerido por muitas escolas. Basta estar junto delas e dos seus docentes para perceber os "desvios" que o modelo encerra.
E: Tem vindo a valorizar o papel dos pais na educação. A família está preparada para cumprir com a sua função educativa?
JA: As famílias são os ninhos onde se desenvolve a educação, os pais são e serão sempre os primeiros e principais educadores. A escola coopera com os pais e não o contrário, se falamos da educação global da pessoa humana. A escola só ganha em envolver os pais, em termos de cooperação educativa, e os pais só ganham em acompanhar em casa (e na escola, uma vez ou outra) a educação escolar dos filhos. Os pais não devem ser chamados a invadir as escolas para cooperarem na educação escolar dos filhos, podem e devem fazê-lo sobretudo em casa, acompanhando com a maior atenção e dedicação os esforços escolares dos filhos. Há muita confusão instalada a propósito desta cooperação escola-famílias, muitos níveis de cooperação, etc., precisamos primeiro de precisar de que falamos quando falamos desta cooperação.
E: Há algum tempo referiu que existe uma "irracionalidade" da rede escolar a nível nacional. O que pode e deve ser alterado?
JA: A rede deve obedecer a orientações nacionais gerais, mas tem sobretudo de envolver os parceiros locais (escolas, pais, autarquias, interesses socioculturais,...) que, em função de critérios educativos, de proporcionar a todos os cidadãos oportunidades educativas e formativas, devem construir as melhores soluções locais.
E: Portugal continua com uma taxa muito baixa de frequência do Ensino Secundário. Há que repensar o que pode ser oferecido aos jovens depois de concluído o 3.º ciclo?
JA: O que havia para pensar está pensado, felizmente. É preciso agir, como se está a fazer actualmente, após dez anos de hesitações, entre 1995 e 2005. Todas as oportunidades devem ser oferecidas aos jovens, com bastante mais flexibilidade, para que todos se possam desenvolver, segundo níveis de excelência muito ajustados a cada pessoa.
E: Que análise faz da política educativa nacional? Cerca de 100 mil professores numa manifestação é sinal de que se deve mudar de rumo?
JA: O conflito é inerente à regulação social. Neste caso, foi construído um consenso, fonte deste conflito. O que me parece, de modo mais global, é que a regulação social em educação requer muito menos controlo a priori e muito mais envolvimento sociocomunitário, além de ter de se sustentar na valorização social dos docentes. Se os professores forem descredibilizados socialmente, como poderemos favorecer a sua autoridade nas escolas? Aos professores, a sociedade, todos os actores sociais devem o maior apoio (certamente crítico) e conceder a maior consideração. Se são diariamente desautorizados, como é que os adolescentes e jovens vão respeitar a sua autoridade? Há muito boa gente que se tem divertido a desautorizar os professores e as escolas, escrevendo permanentemente artigos e dando entrevistas. Há certas "modas" perversas que se pagam muito caro. Já se estão a pagar, como se tem visto e ouvido...
A política educativa em Portugal tem revelado graves problemas e isto por quatro razões:
Primeiro, porque continuamos a adoptar um modelo de mudança e de reforma que é centralista, iluminado, uniformizante, oriundo de um aparelho, mais ou menos incógnito, que toma as milhares de escolas como se fossem uma só e que vê na publicação de normas no Diário da República (sucessivamente alteradas) o principal instrumento da melhoria da educação. Resultado: mudança após mudança, as melhorias ficam muito aquém do esperado, do necessário e do possível.
Segundo, porque o aparelho do Ministério da Educação não confia sistematicamente no exercício profissional, na autoridade e no profissionalismo dos professores. Por isso, investe-se demasiado em tudo definir a priori, interessa menos o que se passa e os resultados gerados em função daquilo que realmente se passa (dão-se passos iniciais na avaliação das escolas). O clima que se gera só pode ser de desresponsabilização, de travagem da autonomia e de desincentivo ao trabalho árduo e contínuo de tantos, em ordem à melhoria gradual e responsável de cada escola.
Terceiro, porque não há liberdade para conceber, desenvolver, aplicar, avaliar e melhorar projectos pedagógicos diferenciados, por escola. Ora, todas as escolas são diferentes e a melhoria da educação só pode resultar se houver liberdade e responsabilidade, quer por parte de quem assume a direcção e a gestão das escolas quer de cada docente, desde a sala de aula até aos órgãos de regulação pedagógica.
Quarto, porque a sociedade portuguesa (pais, autarcas, empresários, interesses socio-culturais locais...) ainda investe pouco na sua educação escolar, no saber, no conhecimento. Existe hoje um novo clima de disponibilidade por parte de muitos actores sociais e esse capital tem de ser fortemente mobilizado. Precisamos de mais sociedade na educação, agora que há muito mais educação na sociedade portuguesa.
in Educare.pt - ler entrevista
Sara R. Oliveira 2008-05-21
Joaquim Azevedo, director da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica, considera que o Ministério da Educação não confia sistematicamente na autoridade e profissionalismo dos professores.
Joaquim Azevedo, professor catedrático e director da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica (UC), afirma que o "ovo" onde a violência germina não está apenas nas escolas, mas em toda a sociedade. O ex-secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário de um dos governos de Cavaco Silva garante que o episódio da Secundária Carolina Michaëlis não é "inédito". "A má educação choca sempre", comenta. Na sua opinião, há questões que ajudam a explicar a perda de autoridade dos professores, como a desarticulação entre escolas e famílias e o aumento da heterogeneidade das turmas. "Se os professores forem descredibilizados socialmente, como poderemos favorecer a sua autoridade nas escolas?", pergunta.
O ex-director-geral do Ministério da Educação, entre 1988 e 1992, assegura que a avaliação dos professores é incontornável. Em seu entender, o desempenho da classe docente tem de ser avaliado porque o mérito deve ser destacado e, além disso, é preciso perceber o que é essa excelência que se espera de quem tem a missão de ensinar. O docente afirma ainda que o Estatuto do Aluno deve ser revisto, por se tratar de um modelo com vários "desvios".
Professor catedrático, licenciado em História e doutorado em Ciências da Educação, considera que a política educativa em Portugal tem revelado graves problemas por várias razões. Como pensar que todas as escolas são iguais, ou se querer colocar em prática um modelo de mudança centralista ou ainda por não haver liberdade para avaliar e melhorar projectos pedagógicos diferenciados. O docente da UC adianta que é necessário investir cada vez mais na educação. "Precisamos de mais sociedade na educação, agora que há muito mais educação na sociedade portuguesa", defende.
EDUCARE.PT: A violência nas escolas está na ordem do dia. Na sua opinião, como se deve abordar este assunto?
Joaquim Azevedo: A violência na sociedade está na ordem do dia. Cresce e floresce. Como é que poderia não estar presente também nas escolas? O ovo onde ela germina não está na escola, está em toda a sociedade, nas guerras, nos media, nas relações humanas.
E: O País ficou chocado com o que se passou na Secundária Carolina Michaëlis. Como digeriu o episódio?
JA: A falta de educação familiar tem originado episódios semelhantes, há muitos anos, nas nossas escolas. Não se trata de algo inédito. Os media hoje dão uma nova repercussão a fenómenos antigos. E isso surpreende-nos. A má educação choca sempre.
E: Nos últimos anos, o professor tem vindo a perder autoridade?
JA: A educação para a autoridade, que é fruto de uma cuidada educação familiar e de um adequado desempenho das instituições sociais, constitui um valor que tem vindo a ser descurado. Muitas famílias navegam sem saber como o fazer e muitas instituições tremem no exercício dessa função. Confunde-se autoritarismo com autoridade e resvala-se com facilidade para a permissividade. O problema é matricialmente de âmbito familiar. E é aí que tem, em primeiro lugar, de ser debatido (nomeadamente também no plano da educação familiar). A perda de autoridade dos professores tem também que ver com outras questões, tais como o aumento da heterogeneidade das turmas, o regime de faltas dos alunos, a desarticulação entre escolas e famílias, a falta de uma cuidada formação inicial e de uma cuidada selecção sobre quem pode ser professor, a falta de focagem profissional dos professores em torno do núcleo da sua missão educativa específica, exigindo escolas mais complexas em termos humanos e profissionais, face a um tempo tão complexo em termos sociais.
E: Como analisa a avaliação da classe docente proposta pela tutela? Os professores estão, de facto, preparados para avaliar os seus colegas?
JA: Se não estão, devem vir a estar. Não há outra solução. Os professores, como quaisquer outros servidores públicos do Estado, têm de ser avaliados no seu desempenho profissional. O mérito tem de ser premiado, de outro modo nunca se perceberá o que é a excelência que desejamos e esperamos dos professores.
E: Fala-se que o novo Estatuto do Aluno é um pouco permissivo, concretamente no que diz respeito às faltas. Considera que a sua aplicação poderá trazer vantagens?
JA: Creio que está mal feito e que devia ser revisto, tal como tem sido sugerido por muitas escolas. Basta estar junto delas e dos seus docentes para perceber os "desvios" que o modelo encerra.
E: Tem vindo a valorizar o papel dos pais na educação. A família está preparada para cumprir com a sua função educativa?
JA: As famílias são os ninhos onde se desenvolve a educação, os pais são e serão sempre os primeiros e principais educadores. A escola coopera com os pais e não o contrário, se falamos da educação global da pessoa humana. A escola só ganha em envolver os pais, em termos de cooperação educativa, e os pais só ganham em acompanhar em casa (e na escola, uma vez ou outra) a educação escolar dos filhos. Os pais não devem ser chamados a invadir as escolas para cooperarem na educação escolar dos filhos, podem e devem fazê-lo sobretudo em casa, acompanhando com a maior atenção e dedicação os esforços escolares dos filhos. Há muita confusão instalada a propósito desta cooperação escola-famílias, muitos níveis de cooperação, etc., precisamos primeiro de precisar de que falamos quando falamos desta cooperação.
E: Há algum tempo referiu que existe uma "irracionalidade" da rede escolar a nível nacional. O que pode e deve ser alterado?
JA: A rede deve obedecer a orientações nacionais gerais, mas tem sobretudo de envolver os parceiros locais (escolas, pais, autarquias, interesses socioculturais,...) que, em função de critérios educativos, de proporcionar a todos os cidadãos oportunidades educativas e formativas, devem construir as melhores soluções locais.
E: Portugal continua com uma taxa muito baixa de frequência do Ensino Secundário. Há que repensar o que pode ser oferecido aos jovens depois de concluído o 3.º ciclo?
JA: O que havia para pensar está pensado, felizmente. É preciso agir, como se está a fazer actualmente, após dez anos de hesitações, entre 1995 e 2005. Todas as oportunidades devem ser oferecidas aos jovens, com bastante mais flexibilidade, para que todos se possam desenvolver, segundo níveis de excelência muito ajustados a cada pessoa.
E: Que análise faz da política educativa nacional? Cerca de 100 mil professores numa manifestação é sinal de que se deve mudar de rumo?
JA: O conflito é inerente à regulação social. Neste caso, foi construído um consenso, fonte deste conflito. O que me parece, de modo mais global, é que a regulação social em educação requer muito menos controlo a priori e muito mais envolvimento sociocomunitário, além de ter de se sustentar na valorização social dos docentes. Se os professores forem descredibilizados socialmente, como poderemos favorecer a sua autoridade nas escolas? Aos professores, a sociedade, todos os actores sociais devem o maior apoio (certamente crítico) e conceder a maior consideração. Se são diariamente desautorizados, como é que os adolescentes e jovens vão respeitar a sua autoridade? Há muito boa gente que se tem divertido a desautorizar os professores e as escolas, escrevendo permanentemente artigos e dando entrevistas. Há certas "modas" perversas que se pagam muito caro. Já se estão a pagar, como se tem visto e ouvido...
A política educativa em Portugal tem revelado graves problemas e isto por quatro razões:
Primeiro, porque continuamos a adoptar um modelo de mudança e de reforma que é centralista, iluminado, uniformizante, oriundo de um aparelho, mais ou menos incógnito, que toma as milhares de escolas como se fossem uma só e que vê na publicação de normas no Diário da República (sucessivamente alteradas) o principal instrumento da melhoria da educação. Resultado: mudança após mudança, as melhorias ficam muito aquém do esperado, do necessário e do possível.
Segundo, porque o aparelho do Ministério da Educação não confia sistematicamente no exercício profissional, na autoridade e no profissionalismo dos professores. Por isso, investe-se demasiado em tudo definir a priori, interessa menos o que se passa e os resultados gerados em função daquilo que realmente se passa (dão-se passos iniciais na avaliação das escolas). O clima que se gera só pode ser de desresponsabilização, de travagem da autonomia e de desincentivo ao trabalho árduo e contínuo de tantos, em ordem à melhoria gradual e responsável de cada escola.
Terceiro, porque não há liberdade para conceber, desenvolver, aplicar, avaliar e melhorar projectos pedagógicos diferenciados, por escola. Ora, todas as escolas são diferentes e a melhoria da educação só pode resultar se houver liberdade e responsabilidade, quer por parte de quem assume a direcção e a gestão das escolas quer de cada docente, desde a sala de aula até aos órgãos de regulação pedagógica.
Quarto, porque a sociedade portuguesa (pais, autarcas, empresários, interesses socio-culturais locais...) ainda investe pouco na sua educação escolar, no saber, no conhecimento. Existe hoje um novo clima de disponibilidade por parte de muitos actores sociais e esse capital tem de ser fortemente mobilizado. Precisamos de mais sociedade na educação, agora que há muito mais educação na sociedade portuguesa.
in Educare.pt - ler entrevista
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