Conheço muitos professores e nos últimos meses não vi um feliz
16.11.2008, José Manuel Fernandes e Graça Franco (Renascença)
O ministério tem de perceber as razões do descontentamento. E se, para haver diálogo, devem terminar as retóricas extremistas, depois tem de se decidir
Leu o Estatuto do Aluno e ficou apavorado. Tem falado com muitos professores e percebeu que o seu desconforto tem motivos que vão muito para lá das guerras da avaliação. Defende ainda que educar não quer dizer que os estudantes sejam obrigatoriamente felizes nas escolas, antes que recebam os instrumentos para construírem a sua felicidade.
- Há uns meses, aquando do primeiro protesto dos professores, disse que o "respeito pelos professores é um valor por si mesmo" e "que está acima de qualquer outra coisa". Seis meses depois, esta imagem não está ainda a ser mais atacada?
- Depois da expressão pública do que sucedeu há seis meses, achei que se iria entrar num período de paz. E se entendo que é um princípio fundamental o respeito por qualquer profissão, o respeito pelos professores é ainda mais importante, pois o futuro do país depende da educação dos seus cidadãos. Por isso estranho que, seis meses depois, regresse a mesma retórica de extremismo. Cada um fica no absoluto da sua verdade, sem aceitar os argumentos contrários, com culpas repartidas, e não sei como se vai sair daqui.
- Esta semana chegámos a assistir a alunos a atirarem ovos à ministra...
- Sempre ouvi falar, desde que estamos em democracia, em direito à indignação. A indignação, desta vez, manifestou-se sobre a forma da gemada, o que, numa altura em que há dificuldades e gente a passar fome, não penso ser a melhor forma de protestar.
- Os professores deviam tentar evitá-las?
- É difícil. Os alunos têm as suas formas de se exprimir e os professores sabem que é ilegal dar uma palmada.
- Depois da manifestação de 8 de Março, depois da acalmia que permitiu que os exames corressem bem, como se explica que os professores tenham voltado a Lisboa ainda em maior número?
- Porque, subterraneamente, o descontentamento era muito grande e não tinha sido resolvido. Depois de um Prós e Contras sobre este tema em que participei, fui chamado por um grupo de professores do distrito de Leiria e estive a ouvi-los. Percebi então que a questão era muito mais funda e não podia ser reduzida ao problema da avaliação. Depois, como médico, recebo muitos professores no meu consultório, conheço muitos professores, e nos últimos meses ainda não vi um feliz. Isso é altamente preocupante. As pessoas não estão satisfeitas, sentem-se muito limitadas no que fazem, até na capacidade de preparar as aulas, sentem-se encerradas numa "gaiola de ferro" burocrática. Encontro professores que, por doença, ficaram limitados, que são excelentes professores mas a quem dizem que ou trabalham de uma determinada maneira ou não podem entrar na escola. Como o consultório de um médico é um pouco como um confessionário, percebi que havia uma grande insatisfação que, agora, explodiu.
- O ministério não devia ter "sensores" no terreno para perceber isso mesmo? Ou há insensibilidade para entender o que sentem os professores?
- Acho que a palavra-chave é sensibilidade. E também afecto. É preciso olhar para isto de outra forma. Não vai à força, nunca foi. É necessário perceber as causas do descontentamento. Quando não há realização profissional, quando os professores não se sentem bem com o que estão a ter de fazer, nunca poderão dar o seu melhor à escola e aos alunos. Isto é uma verdade auto-evidente.
- A ministra diz que qualquer reforma desencadeia sempre resistências, enquanto pessoas como Manuel Alegre apelam ao diálogo...
- Um primeiro-ministro inglês do princípio de século XX dizia que a democracia era o governo pelo diálogo, mas para que funcionasse era necessário que se calassem. O diálogo não pode perpetuar-se sempre, a certa altura é necessário chegar a conclusões. Pessoas como eu, que foram treinadas para resolver problemas, sabem que há uma altura em que é necessário levar as pessoas a fecharem conversas. Ora, o que tenho sentido é que os alunos estão a ser esquecidos nesta discussão. Os professores tinham um trabalho a fazer, e basta ver como o processo dos exames do ano passado correu bem para ver que o fizeram. Mesmo não sendo fácil: sempre que me convidam, vou falar às escolas, e quando olho para aquelas turmas, para aqueles alunos, vejo como é difícil tê-los na mão.
- Os professores sentem que alguns instrumentos que tinham para controlar as turmas lhes foram retirados...
- Eu li o Estatuto do Aluno e aquilo é absolutamente mirabolante. Até o português que utiliza é de uma complexidade artificial, é o "eduquês" oficial, pelo que quando vejo aquela escrita desconfio do pensamento que a gerou, de como essas pessoas entendem a Educação. Ora, a Educação serve fundamentalmente para dar instrumentos de felicidade às pessoas. Ora, a felicidade não é gratuita, tem de ser construída. A escola não serve para manter alunos felizes. Já o Presidente Wilson, dos Estados Unidos, que antes era reitor da Universidade de Princeton, dizia que a preocupação de que os meninos têm de ser felizes na escola não faz sentido.
- O que faz sentido é dar-lhes instrumentos para depois serem capazes de construir a sua felicidade?
- Para construírem a sua felicidade e para serem cidadãos de uma democracia. A educação é um processo admirável porque é um processo de transformação. O que tenho escrito de natureza mais autobiográfica é muito sobre o processo da minha educação. E também, depois, sobre a experiência da partilha com os alunos.
- Quando dá as suas aulas, quando recebe alunos que não conhece, o que é que lhes diz?
- Primeiro que tudo, é necessário olhá-los nos olhos. Depois não se pode ter medo. Este ano dei duas aulas aos alunos do primeiro ano, a uma assembleia larga que bateu palmas no fim, e disse-lhes que tinham uma obrigação moral pelo simples facto de terem entrado para Medicina, até porque à porta tinham ficado muitos, se calhar alguns melhores do que eles. Disse-lhes que, quando se entra para uma universidade, assume-se um compromisso moral que tem de ser respeitado. E que isso implica muito trabalho. É importante que isto lhes seja dito sem medo.
(...)
in Público on-line - link não disponível
16.11.2008, José Manuel Fernandes e Graça Franco (Renascença)
O ministério tem de perceber as razões do descontentamento. E se, para haver diálogo, devem terminar as retóricas extremistas, depois tem de se decidir
Leu o Estatuto do Aluno e ficou apavorado. Tem falado com muitos professores e percebeu que o seu desconforto tem motivos que vão muito para lá das guerras da avaliação. Defende ainda que educar não quer dizer que os estudantes sejam obrigatoriamente felizes nas escolas, antes que recebam os instrumentos para construírem a sua felicidade.
- Há uns meses, aquando do primeiro protesto dos professores, disse que o "respeito pelos professores é um valor por si mesmo" e "que está acima de qualquer outra coisa". Seis meses depois, esta imagem não está ainda a ser mais atacada?
- Depois da expressão pública do que sucedeu há seis meses, achei que se iria entrar num período de paz. E se entendo que é um princípio fundamental o respeito por qualquer profissão, o respeito pelos professores é ainda mais importante, pois o futuro do país depende da educação dos seus cidadãos. Por isso estranho que, seis meses depois, regresse a mesma retórica de extremismo. Cada um fica no absoluto da sua verdade, sem aceitar os argumentos contrários, com culpas repartidas, e não sei como se vai sair daqui.
- Esta semana chegámos a assistir a alunos a atirarem ovos à ministra...
- Sempre ouvi falar, desde que estamos em democracia, em direito à indignação. A indignação, desta vez, manifestou-se sobre a forma da gemada, o que, numa altura em que há dificuldades e gente a passar fome, não penso ser a melhor forma de protestar.
- Os professores deviam tentar evitá-las?
- É difícil. Os alunos têm as suas formas de se exprimir e os professores sabem que é ilegal dar uma palmada.
- Depois da manifestação de 8 de Março, depois da acalmia que permitiu que os exames corressem bem, como se explica que os professores tenham voltado a Lisboa ainda em maior número?
- Porque, subterraneamente, o descontentamento era muito grande e não tinha sido resolvido. Depois de um Prós e Contras sobre este tema em que participei, fui chamado por um grupo de professores do distrito de Leiria e estive a ouvi-los. Percebi então que a questão era muito mais funda e não podia ser reduzida ao problema da avaliação. Depois, como médico, recebo muitos professores no meu consultório, conheço muitos professores, e nos últimos meses ainda não vi um feliz. Isso é altamente preocupante. As pessoas não estão satisfeitas, sentem-se muito limitadas no que fazem, até na capacidade de preparar as aulas, sentem-se encerradas numa "gaiola de ferro" burocrática. Encontro professores que, por doença, ficaram limitados, que são excelentes professores mas a quem dizem que ou trabalham de uma determinada maneira ou não podem entrar na escola. Como o consultório de um médico é um pouco como um confessionário, percebi que havia uma grande insatisfação que, agora, explodiu.
- O ministério não devia ter "sensores" no terreno para perceber isso mesmo? Ou há insensibilidade para entender o que sentem os professores?
- Acho que a palavra-chave é sensibilidade. E também afecto. É preciso olhar para isto de outra forma. Não vai à força, nunca foi. É necessário perceber as causas do descontentamento. Quando não há realização profissional, quando os professores não se sentem bem com o que estão a ter de fazer, nunca poderão dar o seu melhor à escola e aos alunos. Isto é uma verdade auto-evidente.
- A ministra diz que qualquer reforma desencadeia sempre resistências, enquanto pessoas como Manuel Alegre apelam ao diálogo...
- Um primeiro-ministro inglês do princípio de século XX dizia que a democracia era o governo pelo diálogo, mas para que funcionasse era necessário que se calassem. O diálogo não pode perpetuar-se sempre, a certa altura é necessário chegar a conclusões. Pessoas como eu, que foram treinadas para resolver problemas, sabem que há uma altura em que é necessário levar as pessoas a fecharem conversas. Ora, o que tenho sentido é que os alunos estão a ser esquecidos nesta discussão. Os professores tinham um trabalho a fazer, e basta ver como o processo dos exames do ano passado correu bem para ver que o fizeram. Mesmo não sendo fácil: sempre que me convidam, vou falar às escolas, e quando olho para aquelas turmas, para aqueles alunos, vejo como é difícil tê-los na mão.
- Os professores sentem que alguns instrumentos que tinham para controlar as turmas lhes foram retirados...
- Eu li o Estatuto do Aluno e aquilo é absolutamente mirabolante. Até o português que utiliza é de uma complexidade artificial, é o "eduquês" oficial, pelo que quando vejo aquela escrita desconfio do pensamento que a gerou, de como essas pessoas entendem a Educação. Ora, a Educação serve fundamentalmente para dar instrumentos de felicidade às pessoas. Ora, a felicidade não é gratuita, tem de ser construída. A escola não serve para manter alunos felizes. Já o Presidente Wilson, dos Estados Unidos, que antes era reitor da Universidade de Princeton, dizia que a preocupação de que os meninos têm de ser felizes na escola não faz sentido.
- O que faz sentido é dar-lhes instrumentos para depois serem capazes de construir a sua felicidade?
- Para construírem a sua felicidade e para serem cidadãos de uma democracia. A educação é um processo admirável porque é um processo de transformação. O que tenho escrito de natureza mais autobiográfica é muito sobre o processo da minha educação. E também, depois, sobre a experiência da partilha com os alunos.
- Quando dá as suas aulas, quando recebe alunos que não conhece, o que é que lhes diz?
- Primeiro que tudo, é necessário olhá-los nos olhos. Depois não se pode ter medo. Este ano dei duas aulas aos alunos do primeiro ano, a uma assembleia larga que bateu palmas no fim, e disse-lhes que tinham uma obrigação moral pelo simples facto de terem entrado para Medicina, até porque à porta tinham ficado muitos, se calhar alguns melhores do que eles. Disse-lhes que, quando se entra para uma universidade, assume-se um compromisso moral que tem de ser respeitado. E que isso implica muito trabalho. É importante que isto lhes seja dito sem medo.
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in Público on-line - link não disponível
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