quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Sobre o novo modelo de avaliação

A propósito do novo modelo de avaliação de professores, vale a pena ler este artigo publicado no jornal Público pela jornalista Helena Matos, com o título sugestivo de



"O País Superinteressante".

Com este modelo de avaliação, os professores de ponto cruz terão sem dúvida muito melhores resultados que os colegas.

"Importas-te de me dizer o que é que eu faço com duas alunas que nem sequer vêm à aula? Não estamos a falar das barracas ou bairros problemáticos. É gente com carros e férias não sei onde. Mas as famílias não fazem nada delas. E eu também não". A pessoa que do outro lado da linha assim desabafava é uma brilhante professora de Química. Conhecemo-nos há vinte anos numa escola da periferia onde ela desesperava por explicar que a expressão "fauna piscícola" não queria dizer, como alguns alunos daquela escola acreditavam - vá lá saber-se porquê! -, que "os piscícolas" eram uma espécie de vilões poluidores que assassinavam a fauna. Em momentos mais imaginativos sonhávamos arredondar os nossos magros vencimentos imitando um professor francês que, por essa época, enriquecera passando a livro os disparates que compilava nos testes dos alunos. Na verdade não fizemos nada disso. Ao contrário de mim, ela apostou numa carreira no ensino. E agora, perante aquelas duas miúdas que nem sequer entram na sala, perante os outros todos que estão referenciados na comissão de menores, mais as famílias que não sabem o que fazer consigo mesmas quanto mais com as crianças e com os adolescentes, ela pergunta-se como será a resposta na sua ficha de avaliação a este parâmetro: "Promoção de um clima favorável à aprendizagem, ao bem-estar e ao desenvolvimento afectivo, emocional e social dos alunos"? Os parâmetros destas fichas revelam um dos maiores equívocos da nossa sociedade: uma escola que acha que deve ocupar o papel da família e dos amigos e que não assume o seu papel essencial - ensinar. Não admira portanto que as fichas de avaliação dos professores pareçam talhadas para o Departamento das Expressões onde foram enfiadas aquelas disciplinas simpáticas que passam a vida a mudar de nome mas que são temas e variações sobre as pretéritas Ginástica, Desenho e Trabalhos Manuais.
O ensino em Portugal tem o igualitarismo como um dos seus pilares. E se hoje já se discutem as consequências deste igualitarismo quando aplicado aos alunos, continua a ser tabu aludir ao assunto quando estão em causa os professores. Até agora, nas escolas portuguesas, tanto ganhava quem ensinasse ponto cruz como quem leccionasse Matemática. Mas com este modelo de avaliação, os professores de ponto cruz terão sem dúvida muito melhores resultados que os seus colegas de Inglês, Física, Português, Matemática...
Como é que se chegou aqui? Em boa mas não exclusiva parte porque muitas das pessoas que estão na 5 de Outubro e nos diversos serviços do ministério por esse país fora não têm o mais leve conhecimento da realidade das escolas. Muitos foram professores pouquíssimo tempo e frequentemente detestaram a experiência ou pelo menos não a apreciaram o suficiente para se manterem como docentes. O caso do professor Charrua - aquele que terá contado uma anedota que a directora regional não apreciou - levantou um pouco o véu sobre o universo dessas delegações cheias de professores que aproveitaram as ligações partidárias e os conhecimentos nas influências locais para rapidamente dizerem adeus à escola, aos toques de entrada e saída e sobretudo aos alunos. Esta gente uma vez instalada nos seus gabinetes dedica-se a produzir orientações para serem aplicadas nas mesmas escolas onde eles regra geral não conseguiram fazer nada. A acompanhá-los nesta tarefa estão os colegas que estudaram e se formaram nas chamadas Ciências da Educação e que do ensino ou da educação propriamente dita o que de mais próximo viram são as escolas superiores e os institutos onde eles mesmos estudaram e conseguiram automaticamente tornar-se professores das mesmas ciências da educação. Imagina-se um serviço de cirurgia cujos profissionais mais reputados e influentes não fossem os melhores cirurgiões mas sim aqueles médicos que tivessem apostado em teorizar sobre a cirurgia de preferência num espaço bem afastado do rebuliço do hospital? É isto que acontece na educação. Das alturas pedagógico-administrativas para onde se conseguem elevar, estes seres lançam sobre a escola aberrações pedagógicas, como a destruição do ensino técnico ou a defunta avaliação igualitária que não só pôs turmas inteiras com médio/reduzido como incentivava a nivelar por baixo. E produzem conteúdos como a TLEBS que não resistem a cinco minutos de aula. Há vinte anos, alunos do 9.º ano achavam que "os piscícolas" queriam matar a fauna. Provavelmente esses alunos sonhavam ir para aquilo que então se chamava Humanísticas pois assim ficariam finalmente livres da Química, da Matemática e doutros trabalhosos saberes. Na verdade esses alunos também nunca tinham passado a Português desde a escola primária, mas eles tinham razões para serem optimistas: pertenciam à geração que chegava com seis negativas a conselho de avaliação e saía de lá aprovada. A solução encontrada para este desastre foi ensinar cada vez menos. Existem manuais escolares cujos textos são simples adaptações de revistas. Ontem mesmo li, num destes manuais, um texto sobre o sistema circulatório que se limitava a adaptar uma prosa da revista Superinteressante. Era fraquinho o texto, mas mesmo assim entendia-se. Propósito inatingível em matérias como a História, onde um qualquer impulso jacobino proíbe que se ensine o passado diacronicamente. Interdito que está saber o nome dos reis, as criancinhas portuguesas debitam, em escassos meses, uma espécie de cavalgada heróica sobre as classes sociais e as alterações dos meios de produção que vai do terramoto de 1755 ao 25 de Abril de 1974. Onde antes estava a aula da terceira língua ou mais um tempo de Geografia passou a estar Área de Projecto, Formação Cívica e muitas outras actividades que supostamente ensinarão emoções, afectos, sexualidade e a comer verduras. E é sobre este universo adulterado que os professores vão ser avaliados. Alguma vez os professores teriam de começar a ser avaliados. E como a escola há muito que deixou de ter como principal propósito ensinar, estranho seria que na avaliação dos professores se valorizasse essa sua competência. Perante estas fichas os professores foram colocados diante de uma evidência: de professores passaram a entretedores.

Helena Matos (Jornalista)

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